O socialismo pode chegar apenas de bicicleta? A frase - "El socialismo puede llegar solo en bicicleta" -, não uma pergunta, foi proferida por José Antonio Viera-Gallo, secretário de estado da justiça no governo de Salvador Allende. À distância de 35 anos, vale a pena perguntarmo-nos se mantém actualidade ou interesse discutir o tema, que fez parte de um extenso artigo publicado por Ivan Illich no Le Monde, em 1973.
Neste momento é importante fazer um ponto de ordem sob a forma de um parentesis: não sou um socialista nem defendo o socialismo com unhas e dentes. Aliás, na última década creio que abandonei essa dicotomia redutora e simplista, globalização oblige, e não consigo falar já exclusivamente numa natureza socialista ou social-democráta, posto que não nutro nenhum tipo de afeição pelos outros extremos. E assim, também me parece que a simples separação entre direita e a esquerda é demasiado redutora para uma análise eficaz do espectro social e político da sociedade moderna. Fim de parentesis. Adiante.
No Expresso de 16 de Fevereiro, Miguel Sousa Tavares assinalava na sua crónica semanal, a propósito de declarações recentes de Manuel Alegre sobre o caminho feito pelo socialismo em Portugal, que não era preciso fazer-se nenhuma reflexão especial acerca do assunto porquanto está tudo inventado. O socialismo de sucesso chama-se social-democracia, foi inventado há 50 anos na Escandinávia e aplicado com sucesso em vários países do Norte da Europa.
E que tem isto que ver com o título deste artigo? Tudo e simultaneamente nada. Mas vamos por partes.
A primeira questão que temos de abordar é a de sabermos se existe, actualmente, uma crise energética. Isto é, se existe excesso/abundância de energia no mundo, ou se esta é escassa. E depois, como é feito o acesso à energia disponível, designadamente como é esta distribuída pelas pessoas que dela carecem. E finalmente, se para além das pessoas, existe uma prevalência de sectores no acesso à energia em detrimento de outros. A organização destes factores é, afinal, a definição da política energética de cada estado, que se há de enquadrar num contexto global. Por vezes teremos discrepâncias evidentes em estados fronteiros, sendo que isso não é indiferente ao bem-estar das populações que neles vivem. Um exemplo: a superabundância norte-americana em contraste com a escassez mexicana no acesso à energia.
Quando se fala em crise de energia, não se trata de saber se existe muita ou pouca energia disponível. Em princípio, para satisfação das nossas necessidades básicas, a mera força humana será suficiente para a produção da energia necessária. O problema coloca-se quando criamos uma sociedade ávida de recursos energéticos, onde forçosamente a tecnocracia produtora/reprodutora e consumidora de energia acaba por dominar a sociedade e o panorama humano, cerceando a liberdade individual e a convivẽncia multicultural. Porquê? Porque a uniformização do padrão "high energy", em que o bem-estar se avaliza e avalia pela capacidade de acesso à energia deixa pouco espaço para o indivíduo poder viver em liberdade ou tecer sistemas saudáveis de relacionamento social. Veja-se, como exemplo, o consumismo desenfreado, o isolacionismo do transporte motorizado individual, da tecnocracia construtora de uma cultura amarrada pelo transporte motorizado individual, onde a circulação está condicionada pelo automóvel. Os próprios locais de convívio, em regra fechados e dotados de elevadas necessidades de consumo energético tecem o ritmo "fashion" do convívio ("convício"?) social. E diga-se, isto nada tem que ver com uma visão política da sociedade. A cultura social "high energy" tanto pode vigorar em sistemas capitalistas, como socialistas, assim como o seu contrário.
O que nos leva à segunda questão, a do acesso à energia. Numa sociedade "low energy", existem menos diferenças, dado que a diferença de consumo traduz-se igualmente na construção de uma desigualdade entre os membros de uma comunidade. Obviamente, o consumo energético é importante e contribui de forma exponencial para o desenvolvimento e progresso social, mas a partir de determinado nível torna-se no grande - enorme - motor da sociedade e então há uma quebra (democrática?) na racionalidade do seu uso, sobretudo se o consumo de energia significa motorização individual, afinal a principal fonte de desperdício. Curiosamente, quanto maior a necessidade de energia neste capítulo, menor controlo se consegue obter sobre a racionalização do seu uso, dado que temos uma multiplicação de consumidores que, dada a sua escassa dimensão e capacidade negocial, são facilmente manipuláveis pelos grandes interesses das corporações produtoras de motores e combustíveis. Assim, será justo dizer que nos países em vias de desenvolvimento existe toda uma panóplia de escolhas por fazer, o que não quer necessariamente dizer que as mais correctas venham a ser feitas, nem que os membros da sociedade sejam mais livres. Sê-lo-ão em determinada medida, mas não em progresso social ou em desenvolvimento, sendo no entanto possível a partir do momento em que fizerem opções por uma via ou por outra. E é este segundo aspecto que verdadeiramente adquire importância quando falamos de equidade. Têm de ser estabelecidos limites mínimos para uma vivência digna, assim como padrões máximos de consumo e racionalização deste. Está já calculada a dimensão da pegada ecológica aceitável de cada pessoa, será portanto fácil avançar-se com a definição de uma política energética assente em energia abundante, limpa e eficiente. Aquilo que foram as conclusõe da cimeira da Bali (aqui acompanhadas em Dezembro) são, no fundo, a concretização teórica do que acabamos de referir. E nada disto é novo, dado que Ivan Illich referiu precisamente o mesmo há mais de 30 anos. Uma comparação fácil de fazer, neste capítulo, estabelece-se com o tipo de alimentação rica em calorias que uma pessoa obesa fará. A partir de determinado nível, o excesso calórico torna-se prejudicial e deixa de ser um factor benéfico para se tornar num factor de atraso (até de mobilidade). Com a energia ocorrerá o mesmo, a multiplicação consumista e motorista atravanca o progresso a partir de determinado nível, torna-se seu inimigo e, no limite condiciona a liberdade individual. É isto que sucede já na nossa sociedade, na qual pessoas viajam diariamente 3 a 4 horas até aos seus empregos, de onde regressam ao final do dia. Mais, fazem-no gastando uma parte importante do seu rendimento (e consequentemente dessa quota-parte de energia a que têm acesso) nessas deslocações diárias.
Eis-nos chegados ao terceiro ponto a debate. Actualmente, numa sociedade moderna, existem três ordens de factores para consumo da energia disponível produzida: o dispêndio em habitação, em produção industrial e em transportes. Cada sociedade distribuirá a sua energia de acordo com uma visão que tenha do bem-estar colectivo. Ao nível da habitação e da indústria terá de haver sempre um esforço para minorar ou optimizar o nível de consumo energético, tentando-se que a energia seja progressivamente mais "limpa". Não assim ao nível dos transportes. Estas têm uma prevalência excessiva sobre os outros dois factores de consumo, agravado ainda mais pelo uso de combustíveis fósseis em demasia. Hoje, existe um incompreensível antagonismo entre o transporte individual motorizado e o transporte colectivo, sendo que o primeiro continua a ser determinante na organização das nossas cidades. O aparente bem-estar (?) individual proporcionado pelo transporte individual vai avolumando o peso da factura a pagar pela sociedade humana. Apenas um pequeno número de pessoas dele beneficia, mas com que custo para as demais. O custo (e não falamos apenas de preço por litro) da utilização desta energia é elevadíssimo quando pesamos factores como a poluição, a emissão de gases de efeito de estufa, o espaço ocupado nas ruas, o stress acumulado, as doenças respiratórias e cardio-vasculares evitáveis, o tempo de aprisionamento em filas e a procuras de espaços de estacionamento, etc. Evidentemente, postas as coisas desta forma, dir-se-á que a regra nas nossas sociedades consiste ainda no privilégio do transporte individual e a excepção é precisamente o uso do transporte público, o que agrava as desigualdades sociais. Porque é disso que se trata. Um exemplo: porque motivo o habitante de uma terra distante da capital, que se desloca diariamente de bicicleta, ou a pé para o seu local de trabalho, tem de contribuir com os seus impostos para o pagamento de taxas de emissão de gases com efeitos de estufa para a atmosfera, quando não tira rigorosamente nenhum partido das filas de trânsito que pululam numa grande cidade em hora de ponta? Já não falamos aqui de solidariedade social, evidentemente. Até porque esta funcionaria precisamente ao contrário e a pessoa teria direito a ser indemnizada por ser "low-energy". Como resolver, assim, esta problema? Forçamos o indivíduo não-motorizado a adoptar motorização? Damos-lhe uma quota de poluição de que não necessita? Privilegiamos o seu rendimento? Deduzimos os seus impostos? A questão não é, evidentemente, fácil de ser resolvida. Mas envolve um raciocínio que importa debater a curtíssimo prazo, porquanto acarreta uma inevitável desigualdade e injustiça social que se prende com o gasto de recurso importantes num sector que beneficia poucos em detrimento do bem-estar de muitos. Donde, para concluir, o acesso à energia está relativamente democratizado, mas não o uso que desta se faz. Num contexto de justiça social, o acesso à energia é um factor desequilibrante e sê-lo-á tanto mais quanto mais privilegiar o transporte motorizado individual.
Energia e equidade andam, pois, de mãos dadas numa sociedade moderna, devendo constituir um dos principais factores de preocupação das sociedades desenvolvidas, subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. Porque é muito mais fácil planear a partir de uma folha em branco, que corrigir erros que arreigadamente foram sendo cometidos ao longo de décadas assentes no errado pressuposto que a motorização individual constituía um factor de liberdade do indivíduo. Sabemo-lo hoje, nada de mais errado.
Voltando ao início deste texto. O socialismo pode chegar de bicicleta, provavelmente não apenas de bicicleta, mas esta constitui um importante factor de correcção de assimetrias sociais e até de incremento de justiça social. São duas rodas, propulsionadas por uma pessoa, que dispende apenas a energia necessária à sua deslocação, sem causar qualquer impacto em terceiros. As infra-estruturas de que carece têm baixo impacto e libertam espaço individual e recursos para a satisfação de outras necessidades colectivamente mais relevantes que a deslocação individual, a despeito da sua importância. Os países do norte da Europa são o exemplo mais perfeito da convivência salutar da bicicleta com o transporte colectivo e a motorização individual. Aliás, apenas isso justifica o investimento em requalificação e adaptação urbana que cidades como Londres, Helsínquia, Estocolmo, Berlim, Colónia e Paris, para só citar algumas das maiores, estão a fazer. O socialismo ali já chegou há muito tempo. Infelizmente, nem Manuel Alegre nem muitos dos governantes deste país perceberam muito bem o que é que isso significa.
Neste momento é importante fazer um ponto de ordem sob a forma de um parentesis: não sou um socialista nem defendo o socialismo com unhas e dentes. Aliás, na última década creio que abandonei essa dicotomia redutora e simplista, globalização oblige, e não consigo falar já exclusivamente numa natureza socialista ou social-democráta, posto que não nutro nenhum tipo de afeição pelos outros extremos. E assim, também me parece que a simples separação entre direita e a esquerda é demasiado redutora para uma análise eficaz do espectro social e político da sociedade moderna. Fim de parentesis. Adiante.
No Expresso de 16 de Fevereiro, Miguel Sousa Tavares assinalava na sua crónica semanal, a propósito de declarações recentes de Manuel Alegre sobre o caminho feito pelo socialismo em Portugal, que não era preciso fazer-se nenhuma reflexão especial acerca do assunto porquanto está tudo inventado. O socialismo de sucesso chama-se social-democracia, foi inventado há 50 anos na Escandinávia e aplicado com sucesso em vários países do Norte da Europa.
E que tem isto que ver com o título deste artigo? Tudo e simultaneamente nada. Mas vamos por partes.
A primeira questão que temos de abordar é a de sabermos se existe, actualmente, uma crise energética. Isto é, se existe excesso/abundância de energia no mundo, ou se esta é escassa. E depois, como é feito o acesso à energia disponível, designadamente como é esta distribuída pelas pessoas que dela carecem. E finalmente, se para além das pessoas, existe uma prevalência de sectores no acesso à energia em detrimento de outros. A organização destes factores é, afinal, a definição da política energética de cada estado, que se há de enquadrar num contexto global. Por vezes teremos discrepâncias evidentes em estados fronteiros, sendo que isso não é indiferente ao bem-estar das populações que neles vivem. Um exemplo: a superabundância norte-americana em contraste com a escassez mexicana no acesso à energia.
Quando se fala em crise de energia, não se trata de saber se existe muita ou pouca energia disponível. Em princípio, para satisfação das nossas necessidades básicas, a mera força humana será suficiente para a produção da energia necessária. O problema coloca-se quando criamos uma sociedade ávida de recursos energéticos, onde forçosamente a tecnocracia produtora/reprodutora e consumidora de energia acaba por dominar a sociedade e o panorama humano, cerceando a liberdade individual e a convivẽncia multicultural. Porquê? Porque a uniformização do padrão "high energy", em que o bem-estar se avaliza e avalia pela capacidade de acesso à energia deixa pouco espaço para o indivíduo poder viver em liberdade ou tecer sistemas saudáveis de relacionamento social. Veja-se, como exemplo, o consumismo desenfreado, o isolacionismo do transporte motorizado individual, da tecnocracia construtora de uma cultura amarrada pelo transporte motorizado individual, onde a circulação está condicionada pelo automóvel. Os próprios locais de convívio, em regra fechados e dotados de elevadas necessidades de consumo energético tecem o ritmo "fashion" do convívio ("convício"?) social. E diga-se, isto nada tem que ver com uma visão política da sociedade. A cultura social "high energy" tanto pode vigorar em sistemas capitalistas, como socialistas, assim como o seu contrário.
O que nos leva à segunda questão, a do acesso à energia. Numa sociedade "low energy", existem menos diferenças, dado que a diferença de consumo traduz-se igualmente na construção de uma desigualdade entre os membros de uma comunidade. Obviamente, o consumo energético é importante e contribui de forma exponencial para o desenvolvimento e progresso social, mas a partir de determinado nível torna-se no grande - enorme - motor da sociedade e então há uma quebra (democrática?) na racionalidade do seu uso, sobretudo se o consumo de energia significa motorização individual, afinal a principal fonte de desperdício. Curiosamente, quanto maior a necessidade de energia neste capítulo, menor controlo se consegue obter sobre a racionalização do seu uso, dado que temos uma multiplicação de consumidores que, dada a sua escassa dimensão e capacidade negocial, são facilmente manipuláveis pelos grandes interesses das corporações produtoras de motores e combustíveis. Assim, será justo dizer que nos países em vias de desenvolvimento existe toda uma panóplia de escolhas por fazer, o que não quer necessariamente dizer que as mais correctas venham a ser feitas, nem que os membros da sociedade sejam mais livres. Sê-lo-ão em determinada medida, mas não em progresso social ou em desenvolvimento, sendo no entanto possível a partir do momento em que fizerem opções por uma via ou por outra. E é este segundo aspecto que verdadeiramente adquire importância quando falamos de equidade. Têm de ser estabelecidos limites mínimos para uma vivência digna, assim como padrões máximos de consumo e racionalização deste. Está já calculada a dimensão da pegada ecológica aceitável de cada pessoa, será portanto fácil avançar-se com a definição de uma política energética assente em energia abundante, limpa e eficiente. Aquilo que foram as conclusõe da cimeira da Bali (aqui acompanhadas em Dezembro) são, no fundo, a concretização teórica do que acabamos de referir. E nada disto é novo, dado que Ivan Illich referiu precisamente o mesmo há mais de 30 anos. Uma comparação fácil de fazer, neste capítulo, estabelece-se com o tipo de alimentação rica em calorias que uma pessoa obesa fará. A partir de determinado nível, o excesso calórico torna-se prejudicial e deixa de ser um factor benéfico para se tornar num factor de atraso (até de mobilidade). Com a energia ocorrerá o mesmo, a multiplicação consumista e motorista atravanca o progresso a partir de determinado nível, torna-se seu inimigo e, no limite condiciona a liberdade individual. É isto que sucede já na nossa sociedade, na qual pessoas viajam diariamente 3 a 4 horas até aos seus empregos, de onde regressam ao final do dia. Mais, fazem-no gastando uma parte importante do seu rendimento (e consequentemente dessa quota-parte de energia a que têm acesso) nessas deslocações diárias.
Eis-nos chegados ao terceiro ponto a debate. Actualmente, numa sociedade moderna, existem três ordens de factores para consumo da energia disponível produzida: o dispêndio em habitação, em produção industrial e em transportes. Cada sociedade distribuirá a sua energia de acordo com uma visão que tenha do bem-estar colectivo. Ao nível da habitação e da indústria terá de haver sempre um esforço para minorar ou optimizar o nível de consumo energético, tentando-se que a energia seja progressivamente mais "limpa". Não assim ao nível dos transportes. Estas têm uma prevalência excessiva sobre os outros dois factores de consumo, agravado ainda mais pelo uso de combustíveis fósseis em demasia. Hoje, existe um incompreensível antagonismo entre o transporte individual motorizado e o transporte colectivo, sendo que o primeiro continua a ser determinante na organização das nossas cidades. O aparente bem-estar (?) individual proporcionado pelo transporte individual vai avolumando o peso da factura a pagar pela sociedade humana. Apenas um pequeno número de pessoas dele beneficia, mas com que custo para as demais. O custo (e não falamos apenas de preço por litro) da utilização desta energia é elevadíssimo quando pesamos factores como a poluição, a emissão de gases de efeito de estufa, o espaço ocupado nas ruas, o stress acumulado, as doenças respiratórias e cardio-vasculares evitáveis, o tempo de aprisionamento em filas e a procuras de espaços de estacionamento, etc. Evidentemente, postas as coisas desta forma, dir-se-á que a regra nas nossas sociedades consiste ainda no privilégio do transporte individual e a excepção é precisamente o uso do transporte público, o que agrava as desigualdades sociais. Porque é disso que se trata. Um exemplo: porque motivo o habitante de uma terra distante da capital, que se desloca diariamente de bicicleta, ou a pé para o seu local de trabalho, tem de contribuir com os seus impostos para o pagamento de taxas de emissão de gases com efeitos de estufa para a atmosfera, quando não tira rigorosamente nenhum partido das filas de trânsito que pululam numa grande cidade em hora de ponta? Já não falamos aqui de solidariedade social, evidentemente. Até porque esta funcionaria precisamente ao contrário e a pessoa teria direito a ser indemnizada por ser "low-energy". Como resolver, assim, esta problema? Forçamos o indivíduo não-motorizado a adoptar motorização? Damos-lhe uma quota de poluição de que não necessita? Privilegiamos o seu rendimento? Deduzimos os seus impostos? A questão não é, evidentemente, fácil de ser resolvida. Mas envolve um raciocínio que importa debater a curtíssimo prazo, porquanto acarreta uma inevitável desigualdade e injustiça social que se prende com o gasto de recurso importantes num sector que beneficia poucos em detrimento do bem-estar de muitos. Donde, para concluir, o acesso à energia está relativamente democratizado, mas não o uso que desta se faz. Num contexto de justiça social, o acesso à energia é um factor desequilibrante e sê-lo-á tanto mais quanto mais privilegiar o transporte motorizado individual.
Energia e equidade andam, pois, de mãos dadas numa sociedade moderna, devendo constituir um dos principais factores de preocupação das sociedades desenvolvidas, subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. Porque é muito mais fácil planear a partir de uma folha em branco, que corrigir erros que arreigadamente foram sendo cometidos ao longo de décadas assentes no errado pressuposto que a motorização individual constituía um factor de liberdade do indivíduo. Sabemo-lo hoje, nada de mais errado.
Voltando ao início deste texto. O socialismo pode chegar de bicicleta, provavelmente não apenas de bicicleta, mas esta constitui um importante factor de correcção de assimetrias sociais e até de incremento de justiça social. São duas rodas, propulsionadas por uma pessoa, que dispende apenas a energia necessária à sua deslocação, sem causar qualquer impacto em terceiros. As infra-estruturas de que carece têm baixo impacto e libertam espaço individual e recursos para a satisfação de outras necessidades colectivamente mais relevantes que a deslocação individual, a despeito da sua importância. Os países do norte da Europa são o exemplo mais perfeito da convivência salutar da bicicleta com o transporte colectivo e a motorização individual. Aliás, apenas isso justifica o investimento em requalificação e adaptação urbana que cidades como Londres, Helsínquia, Estocolmo, Berlim, Colónia e Paris, para só citar algumas das maiores, estão a fazer. O socialismo ali já chegou há muito tempo. Infelizmente, nem Manuel Alegre nem muitos dos governantes deste país perceberam muito bem o que é que isso significa.