3 de dezembro de 2007

Lisboa Q.I.


De manhã acordamos cedo, ao longe as buzinas dos cacilheiros. Lá fora, por sobre o terraço debruçado sobre o casario, chega-nos um cheiro diferente da cidade. É Domingo de manhã, o silêncio impera deste lado da colina, à sombra do castelo; ali perto, uma igreja e depois outra, repicam os seus sinos chamando os poucos fiéis acordados para a oração matinal. Há gaivotas empoleiradas nos beirais dos telhados, lado a lado, rivalizando com os pombos. O rio sobe no seu leito, transforma-se em finas gotas e empoleira-se no alto dos miradouros, inundando a cidade de um nevoeiro espesso, não bafiento e isento de cheiro a lodo. Hoje não será, definitivamente, um dia sebastiânico. A cidade perfuma-se do cheiro a mar que penetra nas vielas mais estreitas, na escadaria em calçada e nas janelas quebradas do velho Tribunal agora abandonado aos pombos. O ar frio revigora-nos enquanto numa casa abaixo, que não localizamos imediatamente, escondida no nevoeiro, toca 'A Severa'. Descemos as escadas íngremes do velho solar e despenhamo-nos literalmente na rua calcetada. Atrai-nos o rio, que buscamos pela claridade crescente. De bicicleta, a cada curva, a cada esquina, a atmosfera inebriante, muda como num concerto que se anuncia excitante. Andante, sente-se que algo está prestes a acontecer, aceleramos de curva em curva, Allegro, acelera-se-nos o coração, como no Fortuna de Orff. De súbito, após dobrarmos uma última curva a descer, como anunciado a compasso, tudo explode à nossa frente. Grand Finale, as nuvens varadas pela luz deste Sol outonal filtram a luminosidade, projectam-na no rio e fazem-na reflectir-se no casario empoleirado nas colinas próximas da baixa pombalina. Há jogos de luzes na água, nas gotas da neblina, nos beirais dos pardais, nos telhados finamente recortados.

No Terreiro do Paço não há carros, mas há pessoas, crianças, velhos e gente a correr junto à margem, mimos imóveis sob o olhar atónito dos que passam e um par de palhaços decadentes. A Avenida da Índia segue-lhe o exemplo para além do Jardim do Tabaco, onde uma esplanada nova nos detém o olhar. Lisboa abre-se ao rio e este às pessoas. O encanto não está apenas agora nos bairros tradicionais, a nova identidade da cidade mora na articulação da modernidade com o clássico e o pitoresco. Fechamos os olhos e regressamos ao período da segunda guerra, à cidade pejada de refugiados em trânsito para o continente americano, ao racionamento, à espionagem e simultaneamente ao cosmopolitismo de uma cidade provisória durante quase 50 anos. Avançamos pela revolução fora, encontramos alguns murais, Che ainda mora em alguns cantos ribeirinhos, atravessamos o pragmatismo cavaquista e desaguamos na cidade nova, que se procura reinventar a todo o custo.

E o rio, que hoje cheira a rio, de forma tão presente? Qu' importe? Esta cidade, que aprendemos a amar, é eterna. É tempo de regressar ao princípio e assistir à retirada do nevoeiro.

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